Helena Fonseca
QUANDO O ORÇAMENTO CORTA NA VIDA
Confesso que ainda estou em choque. O caso da morte daquela mulher, mãe, de 51 anos, doente com hepatite C deixa-me arrepiada. Ainda mais arrepiada fico com as declarações inqualificáveis do Primeiro-Ministro ao dizer, em reacção àquela morte, que se deve «fazer tudo para salvar vidas, mas não custe o que custar». Se o PS tivesse respondido à altura e se não faltassem tantos meses para as legislativas, não tenho dúvidas: o PSD, coligado ou não, teria com certeza a pior votação de sempre.
Há situações que o povo não perdoa. Porque nos toca a todos. Amanhã pode ser connosco, com o nosso filho, com a nossa mãe… Saber que em Portugal, em pleno século XXI, morre-se por falta de assistência médica, seja nos corredores dos hospitais ou porque não se disponibilizam medicamentos no seguidismo de uma política cega de cortes, não pode deixar ninguém indiferente. Afinal, os grandes passos dados no século XX ficaram lá atrás, esmagados agora pela austeridade que rima com maldade, pelos passos de um Passos comprometido, apenas e só, com o pagamento de uma dívida externa que não acaba nunca. «Custe o que custar».
Bastou morrer uma pessoa, há quase 1 ano à espera do medicamento que lhe teria salvo a vida da temível hepatite C, para de repente, de um dia para o outro, ser disponibilizado o medicamento. Pelos vistos, o que para o próprio Primeiro-Ministro não era, até então, uma solução «equilibrada» passou a sê-lo. A questão é que morreu uma pessoa. Mas mais ainda: a questão é que a intervenção da comunicação social e da indignação que se generalizou nas redes sociais fizeram o governo recuar e repensar a estratégia, meramente política.
Para que se perceba, a prioridade do governo não deixou de ser a política de cortes, «custe o que custar», mas em ano de eleições os objectivos da coligação passaram a estar, depois deste triste episódio, seriamente comprometidos. Foi isso que fez com que a resposta para o problema de saúde dos doentes com hepatite C chegasse tão rapidamente, depois de uma espera tão longa que se revelou trágica. Foi o medo que este caso custasse as próximas legislativas.
Uma coisa é a situação económica das pessoas: a falta de emprego, a falta de dinheiro no bolso… problemas que, na hora de votar, acabam muitas vezes por ser arredados para segundo plano em prol da ideia conservadora de segurança e estabilidade. Aliás, foi com esta ideia que surgiram as grandes ditaduras no século XX! Mas coisa diferente é as pessoas sentirem na própria pele que o preço a pagar por este tipo de políticas austeras e desumanas, acaba por ser demasiado alto. Que pode, a qualquer um de nós, custar a própria vida.
Em menos de 24Horas o governo desbloqueou o fornecimento do fármaco que salva os doentes com Hepatite C. Por outro lado, António Costa, como líder da oposição demorou outras tantas horas a reagir a toda a situação e reagiu já o governo tinha a boa nova para difundir na comunicação social. Tarde demais, digo eu, já que a situação trágica impunha resposta pronta por parte do líder da oposição, até em representação de todos os portugueses, horrorizados com o discurso ignóbil de Passos Coelho.
A memória não é o forte dos portugueses e, por isso mesmo, cabe à oposição o trabalho de a fazer despertar, de reforçar aquilo que os portugueses não podem esquecer no momento do pleno exercício da democracia num Estado de Direito. É também isso que se espera da oposição, até porque as eleições legislativas são em outubro deste ano e é preciso que as pessoas sintam que há verdadeiras alternativas a este governo e a estas opções políticas.
Em pleno século XXI, morreu em Portugal uma pessoa à espera de um medicamento. Têm morrido pessoas nas urgências dos hospitais à espera do socorro que não chega. Têm morrido pessoas que fazem quilómetros em ambulâncias, a bater de porta em porta, à espera de poderem ser recebidas num hospital…
Ainda que o Direito à Vida e o Direito à Saúde sejam formalmente intocáveis na Constituição da República Portuguesa, o certo é que em pleno século XXI deixa-se morrer para não ter de pagar. É a apologia da morte, custe a quem custar.
Helena Fonseca
Jornalista